De esgoto a patrimônio, de balneário a museu vivo um novo ciclo ambiental e cultural começa a ganhar forma no coração do Rio.
Quando alguém pensa na Baía de Guanabara como “balneário”, está limitando e subestimando o potencial incontornável de um espaço que foi palco de centenas de anos de história, de disputas bélicas, trocas comerciais, livre navegação e colonização. A baía tem densidade simbólica e material capaz de articular projetos urbanos, culturais, turísticos e científicos em grande escala se deixarmos de subestimá-la.
Hoje, com os avanços no saneamento e o crescente interesse em preservação, há condições técnicas e políticas favoráveis para que a Guanabara seja redescoberta inclusive sob suas águas.
AVANÇOS AMBIENTAIS ABREM CAMINHO
Desde 2021, a concessionária Águas do Rio (da holding AEGEA) iniciou intervenções estruturais para recuperar o sistema de saneamento nos municípios da bacia da baía. Já se evita diariamente o lançamento de mais de 100 milhões de litros de água contaminada com esgoto na Baía de Guanabara.
Segundo relatórios institucionais, cerca de 92 milhões de litros/dia de esgoto deixaram de ser despejados na baía e nas praias oceânicas adjacentes após os primeiros resultados da reestruturação do sistema.
O painel do Global Ocean Day 2024 destacou que, só nos primeiros anos de ação, a recuperação de redes antigas e a instalação de coletores em “tempo seco” permitiu reduzir insumos poluentes, com impactos visíveis na balneabilidade de praias tradicionalmente comprometidas, como Flamengo e Botafogo.
Além disso, a paisagem urbana do Rio já é reconhecida internacionalmente: a candidatura “Rio de Janeiro: paisagens cariocas entre a montanha e o mar” foi inscrita como Patrimônio Mundial pela UNESCO, contemplando a entrada da Baía de Guanabara e elementos culturais associados.
Essas transformações ambientais configuram um cenário propício para repensar o papel da baía: de mero cenário de lazer para eixo de memória, cultura e mobilidade.
PATRIMÔNIO SUBAQUÁTICO: O QUE JAZ SOB AS ÁGUAS
A Baía de Guanabara esconde um ecossistema quase invisível que conecta passado e presente:
Segundo a Wikipédia, há cerca de 78 embarcações abandonadas pela baía (“cemitério de embarcações”), muitas delas espalhadas principalmente próximo à Ilha da Conceição, em Niterói. Essas carcaças acumuladas representam um passivo ambiental e arqueológico ao mesmo tempo.
Essas embarcações abandonadas são fonte de preocupação quanto a vazamentos de óleo e metais pesados mas também podem ser vistas como vestígios materiais históricos ainda por inventariar.
Até agora, no panorama público, não há projeto consolidado de levantamento sistemático do patrimônio submerso da baía (naufrágios, restos de embarcações coloniais, artefatos comerciais). Mas o conhecimento técnico, como fotografia subaquática, modelagens 3D e escaneamento 360°, já está disponível no mercado científico e tecnológico.
A proposta de instituir um Museu dos Naufrágios da Guanabara não é utopia: trata-se de ativar uma camada de memória esquecida que pode dialogar com os centros históricos da orla, como a Vila da Estrela ou Vila de Iguaçu, costurando uma narrativa histórica-material da cidade pela água.
PROPOSTA ESTRATÉGICA: DO LEITO SUBAQUÁTICO À CIDADE CULTURAL
Para que essa visão se torne real, alguns passos estruturantes parecem urgentes:
Mapeamento e Inventário Arqueológico-Sísmico
Utilizar sonar, varreduras magnéticas, LIDAR subaquático para localizar sítios de naufrágios e embarcações abandonadas.
Fotografar e modelar em 3D os objetos identificados, gerando arquivos digitais de alta precisão.
Registro e Banco de Dados Público
Criar base de dados aberta e interativa (webGIS) com mapas, imagens, profundidade e historiografia correlata.
Desenvolver visualizações em realidade virtual / panorâmicas 360° para difusão pública.
Projeto Museológico e Institucional
Estruturar o Museu dos Naufrágios da Guanabara como polo cultural e científico, integrado com outros museus marítimos já existentes (ex: o Espaço Cultural da Marinha, que já abriga acervo naval e projeta o Museu Marítimo).
Fomentar parcerias institucionais (universidades, Marinha, IPHAN, prefeitura) para custeio, curadoria e operação.
Integração com Rede Urbana e Turismo Cultural
Conectar o museu aquático com roteiros terrestres nas vilas costeiras (Vila da Estrela, Vila de Iguaçu), fortalecendo circuitos culturais de orla e patrimônios históricos locais.
Incluir o transporte aquaviário (barcas, shuttle boat, rotas fluviais interiores) em eixos de mobilidade integrados ao sistema urbano aproveitando a própria baía como via urbana ativa.
Governança Participativa
Envolver comunidades locais nas margens da baía no projeto museológico, compartilhando narrativas e saberes locais.
Garantir planos de monitoramento contínuo, proteção legal dos sítios, e divulgação educativa.
DESAFIOS E POSSIBILIDADES
Poluição remanescente e riscos ambientais: apesar dos avanços no saneamento, a baía ainda convive com resíduos não tratados, escorrimento urbano e remanescentes poluentes. O equilíbrio ecológico é condição indispensável para qualquer operação subaquática.
Captação de recursos e financiamento sustentável: museus especializados exigem investimento inicial alto (infraestrutura, conservação, equipamentos) e também operações contínuas especialmente para monitoramento submerso.
Regulamentação arqueológica e direito marítimo: será necessário um marco legal claro que regule a exploração, preservação e uso público dos achados subaquáticos (leis federais, estaduais, convenções internacionais).
Curadoria interdisciplinar: o museu exigirá integração entre arqueologia, história, tecnologia 3D, museografia contemporânea, comunicação cultural e gestão turística.
Capacidade de diálogo institucional: é primordial que o projeto se insira em agendas urbanas e ambientais municipais, estaduais e federais, para não ficar isolado como iniciativa de nicho.
No entanto, os ganhos podem ser transformadores: o Museu dos Naufrágios da Guanabara poderia se tornar um ícone cultural de escala internacional, dar visibilidade à história naval do Rio, fomentar turismo cultural diferenciado e funcionar como mecanismo de regeneração simbólica e material da cidade.