A SuperVia entende que a venda de produtos roubados dentro dos trens e estações se configura como um problema de segurança pública .
Rio sem entrega: carga roubada é vendida no trem até duas horas após o crime Eu sou um ovo. Minha mãe, uma codorna, se perde em meio às 20 milhões de aves poedeiras da cidade de Bastos, no interior de São Paulo, onde nasci em 4 de abril deste ano. Com um dia de vida, percorri quase mil quilômetros para chegar à Ceasa, no Rio de Janeiro. Logo após desembarcar, já numa caminhonete com destino à Baixada Fluminense, no início da manhã, bandidos renderam o motorista na Rodovia Presidente Dutra e levaram toda a carga, eu inclusive. Dez horas mais tarde, quando a caixa em que eu estava foi aberta por mãos estranhas, me vi dentro de um vagão de trem, sendo ofertado aos passageiros. Fui comprado, numa embalagem com 29 irmãos, por míseros R$ 2 — menos da metade do preço habitual. Para que o freguês economizasse ao me degustar com molho rosé, porém, um trabalhador honesto teve uma arma apontada para si e viu a morte de perto.
A história desse solitário ovo se repete com outras dezenas de produtos. Macarrão, leite, sardinha, numa lista de roubos que se confunde com a de compras do mês. Durante dois meses, a reportagem fez cerca de cem viagens em todos os oito ramais da SuperVia, adquirindo mercadoria que aparentava ter procedência duvidosa — fosse pela postura dos camelôs, fosse pelo perfil ou preço dos itens comercializados.
Ao fim da apuração, de 18 produtos rastreados a partir de informações como lote, fabricação e validade, 16 (ou 88,9%) eram fruto de roubos de carga. A logística criminosa de escoamento que faz a mercadoria chegar à malha ferroviária é de dar inveja a qualquer gigante do setor de entregas: metade dos itens havia sido roubada no mesmo dia em que os ambulantes os ofereciam no trem. Em alguns casos, passaram-se menos de duas horas entre o instante em que o motorista foi rendido, quase sempre em vias expressas ou rodovias, como a Avenida Brasil e a Dutra, e a venda nos vagões.
Essas revelações vêm à tona no primeiro dia da série “O Rio sem entrega”, que destrincha os fatores que envolvem a modalidade de crime que mais cresceu no estado nos últimos anos. Entre policiais, promotores, empresários, representantes de transportadoras e seguradoras, políticos, motoristas, moradores e ambulantes, 75 pessoas foram ouvidas para compor o material exclusivo sobre roubos de carga que começa a ser publicado hoje.
Todos os produtos alvo de roubo comprados nos trens estavam sendo comercializados no ramal Belford Roxo, que passa entre as comunidades do Chapadão e da Pedreira, reduto das principais quadrilhas de assaltantes de carga do estado. Em algumas situações — com um leite e uma manteiga, e com duas embalagens de doces — os itens, mesmo adquiridos com camelôs diferentes, em momentos distintos, eram fruto de um único roubo de carga. Em ambos os casos, crimes ocorridos horas antes.
Ao contrário dos ambulantes que trabalham com produtos legítimos, os distribuidores de mercadoria roubada costumam carregar caixas ou fardos inteiros, tal qual a carga é armazenada pelas transportadoras. As promoções são uma estratégia comum, com várias unidades sendo vendidas por um valor cheio, como R$ 5 ou R$ 10. E não há o menor constrangimento em, volta e meia, evidenciar a procedência ilegal dos itens: “O caminhão tombou, o preço baixou”, diz um dos bordões mais repetidos por vendedores nos vagões.
Ao todo, 14 empresas, de diferentes portes, colaboraram com a reportagem. Os produtos foram rastreados sob a condição de que elas não tivessem seus nomes ou os das marcas divulgados. Todos os produtos comprados pela reportagem, assim como as filmagens e fotos registradas dentro das composições, serão entregues à Delegacia de Roubos e Furtos de Cargas (DRFC) para auxiliar na investigação dos crimes.
Entrevista: Maurício Mendonça, Delegado titular da Delegacia de Roubos e Furtos de Cargas (DRFC)
Há alguma investigação sobre ambulantes que vendem carga roubada?
Temos um inquérito aberto que objetiva justamente identificar esses receptadores de menor escala, que também alimentam o mercado criminoso. E, aqui na DRFC, nós temos um lema: receptador não é trabalhador. Isso é lenda. Receptador é criminoso.
Quem compra um produto roubado no trem pode responder por isso?
Sim. Quem adquire esse tipo de mercadoria também é um receptador. As pessoas têm de ter em mente que alimentam um ciclo vicioso. Estão estimulando que uma arma seja posta na cabeça de um trabalhador.
Como diferenciar o produto roubado?
Não é crível que alguém esteja vendendo, dentro de um vagão, um produto perecível que deveria estar armazenado. O risco de perda do material é enorme. Outra coisa é o preço. Não é possível que a pessoa não perceba que o produto está sendo oferecido por um valor muito abaixo do mercado. A conta não fecha.
Por que a explosão, nos últimos anos, no número de roubos de carga?
Houve uma mudança muito grande de 2013 para cá, porque foi o momento em que o tráfico de drogas passou a ter interesse nesta modalidade criminosa. O tráfico entrou (para roubar cargas) porque percebeu que era um tipo de crime onde não era necessário investimento para obter um grande retorno financeiro.
Veja as respostas da polícia e da SuperVia
Supervia: a empresa diz entender que “a venda de produtos roubados dentro dos trens e estações se configura como um problema de segurança pública”. De acordo com a concessionária, sua equipe de segurança “não tem poder de polícia e, por isso, os agentes não podem apreender e nem mesmo atestar a origem dos produtos”. Por dia, segundo a SuperVia, cerca de 700 mil pessoas circulam pelos trens do estado. A concessionária se negou a repassar o número de passageiros apenas para o ramal Belford Roxo. Dados de 2015, porém, apontam para uma média de 27 mil usuários diariamente nessa linha.
Polícia Militar: a PM informou que o Grupamento de Policiamento Ferroviário (GPFER), responsável por patrulhar a malha ferroviária, teve seu efetivo dobrado e redistribuído, em maio, para atuar, principalmente, em áreas de grande fluxo de pessoas, como as estações de Madureira, Deodoro e Belford Roxo.
Polícia Rodoviária Federal: a PRF afirmou ter intensificado ações de inteligência com investimentos em tecnologia e acrescentou que utiliza um helicóptero no policiamento.
Veja a íntegra das respostas:
Polícia Rodoviária Federal
“Dez rodovias federais cortam o estado do Rio de Janeiro;
A malha rodoviária federal no RJ tem mais de 1,5 mil quilômetros;
O volume de veículos que trafegam nas rodovias federais do estado pode ser considerado um dos maiores do país, principalmente na Baixada Fluminense e Região Metropolitana, onde em alguns trechos e horários ultrapassa a marca de 80 mil veículos por dia;
A repressão aos roubos de cargas nas rodovias federais é uma das prioridades da PRF;
Em 2016, houve um aumento de 418% no número de prisões em relação ao ano anterior, sendo capturados foragidos da justiça, suspeitos de roubos de carga, tráfico de entorpecentes, assaltos a ônibus, crimes ambientais, contrabando, crimes de trânsito, entre outros;
O número de veículos roubados que foram recuperados também aumentou, em 27%;
A PRF intensificou as ações de inteligência, com investimentos em tecnologias para auxiliar o trabalho policial, assim como as atuações dos grupos especializados (Operações Especiais, Motociclistas, Canil, Grupos Táticos e Operações Aéreas) em trechos com maior incidência de criminalidade;
Foi implantada em definitivo uma Base de Operações Aéreas na Superintendência da PRF no Rio de Janeiro, localizada na Rodovia Presidente Dutra, no entroncamento com a avenida Brasil, na Zona Norte;
O policiamento aéreo é realizado por um helicóptero modelo Colibri, geralmente com três tripulantes equipados com armamento de longo alcance, com autonomia para chegar nas divisas do estado em pouco mais de uma hora;
O Arco Metropolitano, desde sua inauguração, é trecho sob a responsabilidade da Polícia Militar, assim como a avenida Brasil;
A PRF considera de extrema importância a interação com a sociedade e a confiança na polícia, sendo assim qualquer informação ou denúncia pode ser feita através do telefone 191.
2016 – Rodovias Federais RJ
Prisões – 3.987
Veículos roubados recuperados – 600
2015 – Rodovias Federais RJ
Prisões – 769
Veículos roubados recuperados – 470″
Polícia Militar
“A Assessoria de Imprensa esclarece que o Grupamento de Policiamento Ferroviário (GPFER), responsável por patrulhar a malha ferroviária no Estado, teve seu efetivo dobrado e redistribuído, em maio, para atuar, principalmente, em áreas de grande fluxo de pessoas como as estações de Madureira, Deodoro e Belford Roxo. Policiais fazem rondas nas plataformas dos ramais da Supervia e nos vagões dos trens da concessionária. Os agentes intensificaram também a segurança em dias jogos de futebol, atuando em plataformas de acessos aos estádios do
Maracanã e Engenhão.
O GPFER mantém um canal de comunicação direto com o Centro de Operações da Supervia. Os policiais do grupamento operam diretamente na malha ferroviária e contam com o apoio dos batalhões da área que fazem a segurança no entorno das estações.
Ainda segundo o comandante do Grupamento, quando os policiais suspeitam de mercadorias transportadas na malha ferroviária encaminham o responsável e a mercadoria a Delegacia de Polícia da área, onde por vezes o material é apreendido para posterior investigação. Em relação ao comércio de produtos em composições férreas cabe frisar que não cabe a Polícia Militar a fiscalização do comércio em si”.
SuperVia
“A SuperVia entende que a venda de produtos roubados dentro dos trens e estações se configura como um problema de segurança pública . A concessionária esclarece que a equipe de segurança não tem poder de polícia e, por isso, os agentes não podem apreender e nem mesmo atestar a origem dos produtos. A empresa conta com as autoridades policiais para atuar nessa fiscalização.
A SuperVia investe em campanhas de conscientização com o objetivo de alertar os passageiros sobre a proibição do comércio ilegal de camelôs e os riscos do consumo de produtos de procedência não conhecida e, por vezes, fora do prazo de validade”.