Esse píer que a gente conhece era o porto de Piedade antes de 1696.
Sob a beleza da estrutura inaugurada há pouco mais de um ano, séculos de história. Testemunha da colonização, do comércio de alimentos e do tráfico de negros africanos, o Pier de Piedade, em Magé, guarda a memória da ancestralidade. Hoje, o local é ponto turístico da cidade e recebe a visitação de centenas de pessoas por fim de semana foi reaberto no dia 1º de novembro, após quase oito meses fechado devido à pandemia. É lá que a artesã Almirena Couto, de 71 anos, comercializa seus produtos:
Vejo o Pier de Piedade como uma fonte de renda, um atrativo turístico. É lá que vendo meu artesanato com fibra taboa. Vem muitas pessoas de fora, pescadores… Nesse período de pandemia, estou fazendo artesanato em casa, para ter mercadorias quando voltar a vender lá.
Para além das selfies e dos benefícios que vieram com a inauguração, muitos moradores da cidade, sobretudo a população negra, sentem falta de informação histórica sobre o local. Presidente da Associação da Comunidade Remanescente do Quilombo do Feital (ACORQF), Valdirene é filha da artesã Almirena. Assim como elas, grande parte da família é de quilombolas e vive na região próxima à Fazenda do Feital, onde fica o quilombo, certificado pela Fundação Cultural Palmares, em 2018.
Piedade foi onde tudo começou. Os negros eram trazidos e leiloados no paredão que tem atrás da praia. A história da Piedade começa aqui. Minha avó paterna tem 94 anos e veio morar na Fazenda do Feital conta.
O Quilombo do Feital fica a aproximadamente dois quilômetros do Pier de Piedade. Valdirene acredita na importância de conhecer mais a história da região e, consequentemente, dos seus antepassados:
É bem provável que meus ancestrais tenham desembarcado aqui e sido escravizados depois. Não tenho certeza, mas a história é toda ligada. Acredito que falta mais informações. É fundamental conhecer a nossa história, saber nosso passado.
Autor do livro “Escravidão, farinha e comércio no Recôncavo do Rio de Janeiro, século XIX”, Nielson Bezerra, que também é professor da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (FEBF/Uerj), conta que milhares de negros africanos desembarcaram no Pier de Piedade:
Esse píer que a gente conhece era o porto de Piedade antes de 1696. Negros africanos vinham do porto do Rio de Janeiro para o Pier de Piedade. Mas, a partir de 1831, começou a haver desembarque ilegal de negros escravizados. Havia também escravizados que trabalhavam lá como carregadores, tropeiros, barqueiros, marinheiros, remadores, estivadores e vendedores.
Bezerra leva grupos de alunos para fazer visitações ao local. Como professor, ele lamenta a falta de mais informações:
Não tem contexto histórico nenhum, nenhuma placa dizendo que houve vários africanos que trabalhavam ali, contando um pouco da história. Não tem trabalho no sentido de preservar essa memória.
Para o babalorixá Pai Paulo de Ogum, do terreiro Ilê Axé Ogum Alakoro, sede do Quilombo Quilombá, em Bongaba, também em Magé, faltam mais ações desenvolvidas no espaço do píer:
A grande expectativa com o píer era desenvolver ações afirmativas que contassem a verdadeira história do espaço, dando veracidade e visibilidade a essa terra de quilombos que é Magé, que movimenta o processo do artesanato e de toda uma recontagem de história dos nossos ancestrais.
O Quilombo Quilombá também foi certificado, em 2018, pela Fundação Cultural Palmares e é reconhecido como quilombo pela Associação de Comunidades Remanescentes de Quilombos do Estado do Rio de Janeiro (Acquilerj). Além dele e do Quilombo do Feital, Magé tem o Quilombo Maria Conga, primeiro quilombo mapeado pela Unesco na Baixada Fluminense, além de ser o único reconhecido pela Fundação Palmares como quilombo na região.
Fonte: Jornal Extra