O aborto em pauta no STF e no mundo

O aborto legal já chegou a 63 países.

O Supremo Tribunal Federal acaba de encerrar a fase de audiências públicas, em que ouviu opiniões contrárias e favoráveis a uma ação apresentada pelo PSOL. Nela, o partido propõe que o aborto realizado até a 12ª semana de gravidez deixe de ser considerado crime. Em favor de sua tese, o PSOL argumenta que a proibição fere direitos previstos na Constituição, como a dignidade, a igualdade em relação aos homens e o direito ao planejamento familiar. Em outro ponto, a ação afirma que a Carta Magna não garante o direito à vida desde a concepção. Prevê “aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida” e assegura “à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida”. A ministra Rosa Weber, relatora do caso, vai redigir seu voto e encaminhá-lo para discussão em plenário, o que deve acontecer apenas no ano que vem.

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A situação atual do processo é a seguinte:

Quem entrou com a ação: PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) e Instituto de Bioética (Anis)

Quando a ação foi protocolada no STF: 8 março de 2017

Quem pediu para entrar na qualidade de “amigo da corte”: o Partido Social Cristão, a União dos Juristas Católicos do Estado de São Paulo e o Instituto de Defesa da Vida e da Família, entre outros.

Resumo da petição: O processo tem o nome de ADPF 442 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442). À luz da Constituição, questiona-se os artigos 124 e 126 do Código Penal — que, na prática, criminalizam o aborto. São eles:

Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lhe provoque:

Pena: detenção de um a três anos

Art. 126 – Provocar aborto com o consentimento da gestante:
Pena: reclusão, de um a quatro anos.

O que aconteceu até agora? Desde que a petição foi protocolada, a ministra Rosa Weber (relatora do processo), tomou algumas providências:

a) Pediu informações à Presidência da República, ao Senado Federal, à Câmara dos Deputados, à Advocacia-Geral da União e à Procuradoria-Geral da República.

b) Recebeu pedidos de atores sociais para entrar na qualidade de “amigo da corte”, conselheiros do STF. Esses pedidos, no entanto, só serão avaliados após as audiências públicas.
c) Convocou audiência pública para serem realizadas e abriu inscrições para quem quiser participar da audiência. Estamos nesta fase.

Quem vai participar das audiências públicas: Instituições da área de saúde, como Fiocruz e Ministério da Saúde, instituições do direito, representantes religiosos, ONGs e especialistas. A lista completa dos participantes está aqui. 

Será uma nova oportunidade para alterar o marco legal do aborto no país. O assunto desperta uma enorme gama de paixões, porque toca em questões morais, éticas e religiosas. Nas audiências do STF, as cenas de exaltação, intolerância e agressividade são uma mostra da alta combustão do tema. Mas, para além dos valores de cada um, é recomendável que o assunto seja tratado com racionalidade e, sobretudo, com uma atenção especial aos dados objetivos. E, objetivamente, nos países ricos e desenvolvidos, em cuja maioria o aborto é legalizado, morrem menos de duas mulheres para cada 100 000 abortos. Nos países em desenvolvimento, onde o aborto é normalmente considerado um crime, morrem 220 mulheres para cada 100 000 abortos. Ou seja: a legislação, ao criminalizar a interrupção da gravidez, mata um enorme contingente de mulheres.

No Brasil, uma mulher morre a cada dois dias devido a complicações do aborto, segundo os últimos números disponíveis do Ministério da Saúde. Outro dado: a incidência do aborto é o dobro entre mulheres pobres e o triplo entre mulheres negras. Os gastos com hospitalização em decorrência do aborto no SUS foram de 50 milhões de reais em 2017 e 500 milhões na última década.

A todas essas mortes, a toda essa desigualdade e adicionem-se ainda o tormento, a dor, a solidão, a culpa, a angústia , a lei brasileira acrescenta a prisão para as mulheres que interrompem a gravidez. Por mais valorosas e respeitáveis que sejam as objeções individuais de cada um de nós, talvez esse quadro, esse quadro dramático, seja por si só motivo suficientemente sólido para que o aborto deixe de ser considerado um crime no Brasil. E os depoimentos que VEJA colheu há mais de vinte anos entrem definitivamente para o passado.

A liberação da prática do aborto no Brasil chegou ao prédio de Brasília onde aportam todas as decisões relevantes do país nos últimos tempos: o Supremo Tribunal Federal. Ao longo de dois dias, sessenta representantes de diferentes setores da sociedade participaram de audiências públicas no plenário para expressar sua posição sobre o tema e pôr em marcha o julgamento de uma ação que, ao mesmo tempo, questiona a constitucionalidade de dois artigos do Código Penal que punem a prática do aborto e defende a descriminalização do procedimento até a 12ª semana de gravidez. Sendo o STF o guardião da Constituição, coube a ele mexer no vespeiro — o que não deixa de ser promissor. Com a questão examinada sob a letra fria da lei, que é impermeável às paixões e às polêmicas que o assunto desperta, é possível que o Brasil tenha a chance de encarar a realidade. E a realidade é que, no país, cerca de 500 000 mulheres interrompem a gravidez todos os anos, e a cada dois dias uma mulher morre de complicações decorrentes de procedimentos malfeitos.

O aborto é permitido na maior parte do mundo desenvolvido e proibido na porção menos avançada, sobretudo onde predomina a Igreja Católica, terminantemente contra a prática. As questões religiosas e éticas que envolvem a interrupção da gravidez são profundas e relevantes, mas têm caráter intrinsecamente individual. Cada pessoa pode ser a favor ou contra o aborto e é livre tanto para censurar as mulheres que interrompem a gravidez quanto para criticar as que têm filhos sem condições de criá-los. Mas fechar um país ao aborto e qualificá-lo de crime é não só improdutivo, mas também cruel. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), são realizados no mundo 25 milhões de interrupções de gravidez em condições precárias a cada ano. Nos países onde a prática é crime morrem 220 mulheres para cada 100 000 abortos realizados. Naqueles em que é permitida, a mortalidade materna não passa de 1,7 para 100 000.

No Brasil, a limitação do procedimento a situações de estupro, risco de vida da gestante e anencefalia do feto não impede que o aborto seja recorrente em todas as faixas de renda e escolaridade. “Quem são as mulheres que abortam? Essa multidão pode ser descrita por números: uma por minuto, 56% católicas, 26% evangélicas. É a mulher comum brasileira”, disse, em seu depoimento no STF, a antropóloga e ativista Débora Diniz, uma das responsáveis pelo mapeamento de perfil realizado pela Universidade de Brasília. No fim de julho, Débora precisou sair da cidade devido a ameaças que recebeu por sua posição a favor da descriminalização, o que só mostra a que níveis absurdos chegou a intolerância com quem pensa diferente.

O levantamento da UnB revela que uma em cada cinco mulheres de até 40 anos já realizou ao menos um aborto no Brasil com toda a carga de medo, angústia, culpa e dor que o procedimento carrega. Metade delas apelou para o uso de misoprostol, medicamento recomendado pela OMS que aqui só pode ser vendido a clínicas e hospitais cadastrados, mas é facilmente encontrado no mercado paralelo. Mesmo nesse quadro favorável, há riscos quando as mulheres fazem uso errado ou tardio do remédio. Pior ainda: quando dá errado, muitas demoram a procurar um hospital e escondem que fizeram aborto, atrasando intervenções urgentes. “Elas têm medo de ser denunciadas. Metade das notificações parte dos profissionais de saúde que as atendem”, explica Flávia Nascimento, da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.

A metade que não toma o medicamento recorre a clínicas infectas, médicos inescrupulosos, poções abortivas e introdução de objetos variados no corpo. Uma análise da Defensoria do Rio dos depoimentos de 42 mulheres que respondem na Justiça por ter abortado mostra que vinte fizeram o procedimento sozinhas e apenas três interromperam a gravidez antes que ela completasse doze semanas. As 22 que procuraram clínicas clandestinas pagaram de 600 a 4 500 reais. Tiveram sorte, pois sobreviveram. Em 2014, Jandira dos Santos Cruz, de 27 anos, deixou as duas filhas em casa, em Campo Grande, bairro da Zona Oeste do Rio, seguiu para submeter-se a um aborto clandestino e morreu. Seu corpo, carbonizado, só foi encontrado um mês depois.

Para não cair no que classifica de “açougue”, e com medo de ser presa, a paulistana Rebeca da Silva Leite, de 31 anos, mãe de dois filhos e disposta a interromper uma terceira gravidez, tomou no ano passado a inédita iniciativa de pedir à Justiça autorização para abortar. A ideia partiu da antropóloga Débora, que também ajudou na elaboração da ação levada ao STF e propôs a Rebeca que ela fosse a “face humana” do processo. Mesmo alertada de que seria alvo de críticas, Rebeca se assustou com a repercussão. Grupos contra a legalização do aborto conseguiram o número de seu telefone e ligavam para sua casa. Uma mulher foi bater à sua porta, pedindo que desistisse. O STF não aceitou conceder a liminar no âmbito da ação do PSOL. Pouco depois, Rebeca foi convidada a participar de um seminário na Colômbia, onde o aborto é permitido, e interrompeu a gravidez em uma clínica de lá. “Foi um alívio”.Abortos inseguros no Brasil levam à hospitalização de 250 000 mulheres por ano. Na última década, o SUS gastou 500 milhões de reais no tratamento de complicações.

O aborto legal já chegou a 63 países, com a inclusão mais recente da católica Irlanda, onde a medida foi aprovada por 66% dos votos em um plebiscito, em maio. Caminhando na direção contrária, o Senado da Argentina rejeitou descriminalizar o aborto até catorze semanas, depois de a Câmara ter aprovado o projeto por diferença de quatro votos. A vitória inicial impulsionou quase dois meses de manifestações diárias nas ruas, com participantes vestidas de manto vermelho e touca branca — referência ao uniforme das raras mulheres férteis forçadas a reproduzir em uma sociedade dominada pelo conservadorismo religioso, tema da premiada série The Handmaid’s Tale. “As novas gerações, protagonistas dessa mobilização, representam a mudança e a certeza de que, se não sair agora, o projeto será lei em breve”, afirma a deputada Victoria Donda antes da rejeição pelos senadores, que já era esperada.

 Uma das vozes mais vibrantes da campanha pró-aborto, Victoria, de 41 anos, nasceu na Escola Superior de Mecânica da Armada (Esma), em Buenos Aires, o principal centro de tortura na ditadura militar argentina. Seus pais até hoje são considerados desaparecidos. “Se vamos falar de aborto clandestino, eu sei muito bem o que é clandestinidade. A clandestinidade entra no corpo. A pessoa se sente só”, disse ela para uma matéria no jornal The New York Times. Embora seja sensível aos argumentos de quem é contra o aborto, a deputada reitera que criminalizá-­lo é uma afronta inaceitável à liberdade das mulheres. “Sinto pesar pelos embriões que não vão nascer, mas também sinto pesar quando vejo o rosto das mulheres que desfrutam todos os direitos e, mesmo assim, são impedidas de trocar a clandestinidade pela saúde pública”, diz.

O movimento pela descriminalização do aborto se intensificou nas últimas duas décadas na América Latina. A prática foi aprovada na Colômbia, na Cidade do México (apenas na capital, e não no país), no Uruguai, na Guiana, na Guiana Francesa e em Porto Rico. Antes disso, o aborto só era praticado legalmente em Cuba, como política nacional para garantir uma baixa taxa de mortalidade infantil. A mobilização agora está se disseminando na região. “É uma ação protagonizada pelas mulheres. Elas estão quebrando o velho sistema ao declarar que são donas do seu corpo”, reflete a antropóloga uruguaia Susana Rostagnol. No Uruguai, onde a liberação se deu em 2012, as mortes em decorrência do procedimento despencaram: foram 8% dos óbitos maternos entre 2011 e 2015, contra 37% de 2001 a 2005.

Nos Estados Unidos, a liberação também foi alcançada no Judiciário. Em 1973, a Suprema Corte deliberou sobre o caso Roe vs. Wade, junção do pseudônimo Jane Roe, inventado para proteger a identidade da mulher que foi aos tribunais pelo direito ao aborto em Dallas, no Texas, e do nome do promotor Henry Wade, contrário ao pedido. Os juízes americanos deram ganho de causa à mulher, com base nas liberdades individuais garantidas pela 14ª emenda à Constituição. Posteriormente, Jane Roe foi identificada como Norma McCorvey, que veio a se converter a uma religião an­tiaborto e renegou sua ação. Se a virada de casaca de Norma não teve maior efeito, a virada ultraconservadora na Presidência de Donald Trump pode ter. A reabertura da questão foi tema de campanha e a Suprema Corte, na composição atual, não é refratária a reverter a decisão.

A relatora do processo de descriminalização movido pelo PSOL, a ministra Rosa Weber, começará agora a redigir seu voto, e a ação só deve ser levada ao plenário do STF no ano que vem, quando um novo governo terá assumido (veja a posição dos presidenciáveis abaixo). Com base em opiniões emitidas no passado, os grupos pró-descriminalização estão otimistas: calculam que seis dos onze ministros sejam favoráveis à proposta. A própria Rosa já questionou, no debate de uma ação anterior, a constitucionalidade dos dois artigos do Código Penal na berlinda. A atual presidente, Cármen Lúcia, escreveu em Vida Digna: Direito, Ética e Ciência que as mulheres pobres têm muitos filhos por causa “da ordem penal vigente”. É um sinal de que talvez essa ordem mude.

O jurista indiano Anand Grover, de 66 anos, já rodou dezenas de países para estudar in loco as diferentes legislações sobre o aborto. Só o Brasil ele visitou duas vezes quando era relator especial em saúde pública da Organização das Nações Unidas, cargo que ocupou entre 2008 e 2014. De volta ao país na semana passada para participar da audiência pública que tratou do tema no Supremo Tribunal Federal, em Brasília, Grover concedeu uma entrevista ao repórter João Batista Jr., em que explica por que a proibição cega do aborto é sinônimo de atraso.

Como são as condições para o aborto no Brasil? Nos casos em que o procedimento é ilegal, falta segurança, como ocorre em outros países. Mas, mesmo nas situações em que o aborto é previsto por lei (se a mulher foi vítima de estupro, se ela corre risco de vida ou se o feto apresenta anencefalia), veem-se barreiras enormes para sua realização no Brasil. Os serviços de referência concentram-se nas capitais e nem sempre funcionam: das 68 entidades credenciadas pelo Ministério da Saúde, apenas 37 estão ativas.

Muitos países legalizaram o aborto há décadas. O que explica a posição brasileira? A religião tem um grande peso nisso — maior até do que o grau de desenvolvimento do país. Nações de fortes raízes católicas, como o Brasil, costumam demorar mais para progredir nesse campo por acreditarem que o direito à vida começa no momento da concepção.

O aborto foi legalizado na Índia em 1971. Significou um avanço? Sim. Menos mulheres morrem hoje em consequência do procedimento. Mas ainda há problemas. Por questões culturais, muitas indianas fazem o chamado aborto seletivo: se esperam uma menina, preferem interromper a gravidez. Por isso proibiram no país o ultrassom para determinar o sexo do bebê.

Em que medida a condenação ao aborto é uma decisão política? Como pode custar votos, sua legalização acaba não entrando na pauta de políticos que estão no poder mais para representar os interesses de certos grupos do que para pôr para a frente assuntos verdadeiramente importantes.

O Brasil terá eleições neste ano, mas os candidatos não trouxeram o aborto à discussão. Isso o preocupa? É triste que o assunto não esteja sendo debatido. Em um Estado democrático de direito, porém, os políticos têm um papel e o Supremo Tribunal Federal, outro. Se do lado político se foge da questão do aborto, a Suprema Corte tem se encarregado de liderar a mudança.

Qual é a posição da Organização Mundial da Saúde sobre o tema? Quando os abortos seguem as recomendações da OMS, o risco de complicações é baixíssimo. Existem medicamentos básicos para o procedimento que funcionam bem até a 12ª semana de gestação justamente o limite em que a Justiça brasileira estuda liberar o aborto no Brasil.

O senhor é casado com a advogada e ativista Indira Jaising. Por que decidiram não ter filhos? O mundo está superpopuloso, sobretudo a Índia. Não quisemos colaborar com o problema (risos).

Fonte: Veja

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