Isso porque a análise nos permite descobrir o quanto nos deixamos afetar por aquilo que não temos controle.
Segundo a sabedoria popular, Freud explica aquilo que, à primeira vista, parece polêmico, ou sem explicação, ou sem um entendimento direto.
A Freud cabe dar sentido àquilo que a gente nem sabe o que é, mas sente quando acontece, e não tem ideia de como descrever e como agir perante esse tanto de não saberes.
Mas afinal de contas, o que o neurologista austríaco e pai da psicanálise, que hoje faria 160 anos, explica, de fato?
Explica a raiva, a tristeza e a dor? Explica aquela angústia que fica dando nó de marinheiro no estômago? Explica a inveja que sentimos, e o ressentimento que deixamos crescer em nós? Explica nossa dificuldade com o amor? Explica nossa intimidade com a raiva? Explica o tumulto de nossas relações? Explica o fracasso das dicas de auto-ajuda?
Explica estarmos preocupados? Explica quando não damos a mínima? Explica nossa vontade de ser eternos? Explica nosso indesejável desejo de morrer? Explica aquilo que dizemos mas que não queríamos dizer?
Não, Freud não explica. Não da maneira que esperamos. Seria muita pretensão, e a psicanálise que ele concebeu possui, já em sua constituição, um atestado de que não se pode tudo, não se é tudo, não se tem tudo.
Mas ele fez perguntas, ouviu histórias, prestou atenção em detalhes e desenvolveu uma escuta singular que permite que os pacientes ouçam aquilo que eles mesmos dizem, e com isso vai costurando sentido a partir das palavras e da maneira como as pessoas se colocam no mundo. Ele nos leva a descobrir respostas.
Freud morreu em 1938, depois de 16 anos lutando contra um doloroso câncer no maxilar. Os 160 anos do nascimento dele são uma boa oportunidade para pensarmos como ele subverteu e revolucionou a maneira como pensamos o ser humano no mundo.
Ele fez isso ao longo de uma extensa obra, inspirada por seus pacientes, e também por artistas e pensadores como Sófocles, William Shakespeare, Miguel de Cervantes, Henrik Ibsen, Fiodor Dostoieski, Thomas Mann, Emile Zola, Mark Twain, Goethe, Michelangelo, Leonardo da Vinci e Rembrandt.
A culpa não é do outro (ou do universo)
Não é raro reclamarmos de algo que o outro tenha feito conosco, ou de como o mundo conspira contra nós. Aquela pomba que soltou aquele zepellin melequento na sua cabeça no dia da entrevista do emprego estava ali encaminhada pelo universo, com um destinatário muito específico: você. Não, né?
O outro e o mundo são responsáveis por nossas tristezas e infelicidades. Eles nos mandam tristeza, morte e infortúnio, e não há nada que possamos fazer a não ser nos conformar, reclamar. Ou tomar uns remedinhos e ignorar tudo. Afinal, não temos nada a ver com o que o ocorre em nossa própria vida.
Com a psicanálise, Freud propôs um verdadeiro empoderamento ao ser humano. Isso porque a análise nos permite descobrir o quanto nos deixamos afetar por aquilo que não temos controle, e então começamos a perceber que temos sim, possibilidade de nos posicionar perante o que nos envolve. Em muitos casos, podemos fazer escolhas, podemos mudar a maneira como escolhemos, e assim, vamos nos “apropriando” de nossas próprias decisões.
Mas esse empoderamento exige que façamos algumas perguntas bastante “desconfortáveis”, cuja resposta pode não ser a que esperamos. Não, não é fácil. Um exemplo contemporâneo: Ficamos mais tempo no trabalho porque alguém nos obrigou ou porque partimos do pressuposto de que não vão nos achar menos competentes ou “relaxados” se não fizermos a hora extra? Nossos relacionamentos são coincidentemente um lixo, ou escolhemos pessoas que nos levam a esse tipo de relação?
“Ao contar sua história, o sujeito pode reconhecer, em algum momento, a sua parte naquilo e não para se sentir culpado, mas sim para se responsabilizar por certos tropeços e situações. Somente assim, passando de passivo para ativo, é possível uma mudança de posicionamento em relação à sua história. Uma resinificação”, explica a psicóloga e psicanalista Amanda Sensini Costa.
Somos diferentes
A ideia de igualdade deve ser perseguida sempre no campo dos direitos e da inclusão. Vivemos em sociedade, e a desigualdade como cidadãos vem mostrando seus efeitos pérfidos há milênios.
Porém, quando se fala de seres humanos, pensando em características, desejos, opiniões, maneiras de se posicionar e de se reagir à vida, somos diferentes. Cada um é cada um: singular, com sua subjetividade, sua constituição particular como sujeito.
É por isso que irmãos criados da mesma maneira pelos pais jamais serão iguais. Cada serzinho ali é único e tem uma relação peculiar com os pais e com o mundo.
Por sermos diferentes e únicos, individualmente falando, não faz sentido criarmos uma “cartilha” de sintomas e categorizarmos os problemas de cada pessoa conforme essa cartilha. Todas que apresentarem os mesmos sintomas receberão o tratamento X. Para Freud, cada caso é um caso. Se dois pacientes apresentam o sintoma de não conseguirem mais andar, o “não andar” tem sentido diferente para cada um. E esse sentido só vai se revelando na medida em que o paciente fala.
Somos falhos e imperfeitos (e babacas e monstruosos)
Se temos acesso à educação, à informação e a maneiras de viver melhor, por que cargas d’água o dia não termina conforme planejamos e ainda falamos coisas inapropriadas? Porque não somos tudo isso que pensamos ser quando fomos o bebê mais amado do universo.
Somos bem o oposto disso: temos falhas e somos limitados. E pior: não somos donos nem do nosso nariz, porque segundo Freud, o manda-chuva é o nosso inconsciente, abordado no livro A Interpretação dos Sonhos (1905) e no texto O Inconsciente (1905).
“Ele [Freud] é o único a ter teorizado, assim como seus herdeiros, o que chamamos de inconsciente. Não falo do subconsciente nem do inconsciente dos psicólogos. Eu me refiro ao inconsciente, que pode ser traduzido pela noção de que, quando alguém fala, não sabe o que diz”, afirma ao Estado de S. Paulo a psicanalista francesa Elizabeth Roudinesco.
É o inconsciente quem manda em tudo, decide a hora de abrir e fechar a lojinha, quem entra e quem sai. É pra debaixo desse “tapete” que mandamos nossos desejos, características pessoais e lembranças que não suportamos conhecer ou ter acesso. O problema é que há uma pressão constante para que esses conteúdos “vazem” na nossa vida rotineira, e eles sempre encontram uma maneira de vazar. Esse vazamento costuma ser doloroso, sofrido, incômodo e assustador.
A tarefa da análise é trazer esses conteúdos à tona de uma maneira que não precisem “vazar”. E quando esses conteúdos chegam ao consciente, existe a possibilidade de se dar um novo destino a uma situação que antes era de muito sofrimento, ou que incapacitava a pessoa de existir no mundo.
Sexualidade não deveria ser tabu
A obra de Freud costuma ser resumida às noções de que “tudo é culpa da mãe” e “tudo é relacionado com sexo”. O que ele propôs, e descobriu em suas observações na clínica, é que a sexualidade – que vai muito além do ato sexual – e situações relacionadas a ela já nos primeiros anos de vida era o gatilho para alguns modos de viver do sujeito do mundo. Estas descobertas foram apresentadas no texto Três Ensaios para uma Teoria da Sexualidade, de 1905.
A Psicanálise foi construída à base de erros, muitos erros
Como disse certa vez uma professora, Freud passou sua vida pesquisando e criando teorias que pudessem explicar e se aplicar ao que ele via em seus pacientes. Tudo começava no divã, na observação de como os seres humanos se comportavam. As mulheres histéricas que ele tentou hipnotizar, antes mesmo de ele criar a psicanálise, apresentavam sintomas que se dissolviam na medida em que elas falavam e davam sentido ao que acontecia em suas vidas.
Quando temos acesso a uma teoria, é normal pensarmos que ela foi sujeita à prática e, se ainda é aplicada popularmente nos dias atuais, é porque ainda está correta. Mas a psicanálise está sempre se refazendo, agregando conhecimentos e corrigindo rotas.
Freud se arriscou ao erro diversas vezes, e tinha o costume de informar ao leitor quando sua teoria estivesse errada e sendo corrigida. Ele abandonou, por exemplo, a teoria da sedução, segundo a qual as crianças teriam necessariamente passado por um abuso sexual na infância que teria dado origem a eventos traumáticos.
Os trabalhos dele acerca da homossexualidade e da mulher se mostraram insuficientes e desatualizados, e permanecem em constante revisão, seja para uma atualização, ou como ponto de partida para novas descobertas.
Conviver implica renunciar
Pegar um ônibus lotado às 19h de uma sexta-feira de engarrafamento recorde não é nem um pouco legal. Menos legal ainda é se cada um dos passageiros, por estar cansado, começar a andar no veículo trombando, pisando, esbarrando e sendo inconveniente com quem estiver ao lado. Ser grosseiro(a) e justificar com um “tô cansado(a), que os outros se lasquem”.
Conviver implica coexistir em um mesmo espaço, e não há possibilidade de vivermos em sociedade fazendo apenas o que quisermos e for vantajoso pra nós. A convivência implica renúncia justamente porque exige que se considere o outro. E nada disso é natural, ou fácil, pois para nosso inconsciente, não há regras ou limites. Segundo Freud, quem coloca limites e impede o crime é a lei, a civilização.
Em vez de explicar, talvez Freud tenha apenas tenha aberto uma poderosa (e não visível) porta para que façamos perguntas. Sobre nós, sobre o mundo, sobre o que nos escapa. Sobre nossa responsabilidade em nossa própria vida. Sobre comando e sobre a falsa impressão de que temos poder e controle sobre nós o tempo todo. Sobre termos defeitos, errarmos e, mesmo assim, seguir em frente.