“Fiat justitia, ruat caelum.” “Faça-se justiça, ainda que os céus desabem.”
No cenário polarizado da política brasileira, o julgamento de seis aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) não apenas reacende o debate sobre crimes contra o Estado Democrático de Direito, mas também lança luz sobre algo ainda mais profundo: a integridade do processo judicial no Brasil.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) acusa os réus de crimes como tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, dano ao patrimônio tombado e envolvimento em organização criminosa armada. As penas somadas podem ultrapassar 46 anos de reclusão. Dada a gravidade das acusações, espera-se do Judiciário a mais estrita observância dos princípios constitucionais — especialmente a imparcialidade e o devido processo legal.
Imparcialidade: Julgadores neutros ou politizados?
A imparcialidade judicial é um dos pilares do Estado de Direito. O artigo 5º, inciso XXXVII da Constituição Federal proíbe a criação de tribunais de exceção, reforçando que nenhum cidadão pode ser julgado por uma estrutura judicial montada para fins políticos ou de vingança institucional.
No entanto, a escolha da Primeira Turma do STF — composta por ministros frequentemente associados a decisões críticas ao governo Bolsonaro — para julgar os envolvidos, desperta questionamentos legítimos. Ainda que o regimento interno permita tal designação, o simbolismo e a percepção pública de parcialidade comprometem a legitimidade do julgamento.
O Código de Processo Penal também é claro: o artigo 254 determina que juízes com relação pessoal ou inimizade manifesta com qualquer das partes devem ser considerados suspeitos e afastados do julgamento. O desafio aqui é mais subjetivo: como avaliar imparcialidade quando o Judiciário é parte ativa do debate político?
Constitucionalidade: A Constituição como limite, não como instrumento
O artigo 5º da Constituição Federal garante uma série de direitos fundamentais. Entre eles, destacam-se:
Inciso LIV: Ninguém será privado da liberdade sem o devido processo legal;
Inciso LV: Direito ao contraditório e à ampla defesa;
Inciso LVII: Presunção de inocência.
Os procedimentos adotados pela Corte levantam dúvidas sobre a efetividade desses princípios. A aceitação célere da denúncia, a limitação de acesso à produção de provas e a ausência de deliberação pública mais ampla — em um caso de enorme repercussão nacional — sugerem que o processo pode ter servido mais para reafirmar uma postura institucional do que para realizar justiça em seu sentido mais técnico.
Além disso, o artigo 93, inciso IX da mesma Constituição exige que todas as decisões judiciais sejam públicas e fundamentadas. Quando os votos proferidos se baseiam mais em análises políticas ou “contextos” do que em provas diretas da participação de cada réu, corre-se o risco de transformar o julgamento em um ato político-judicial, esvaziando seu caráter técnico.
O papel do Judiciário em tempos de crise
A democracia brasileira está em constante tensão. O episódio dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, somado à retórica golpista de setores políticos, exige uma resposta institucional firme. Mas há uma linha tênue entre justiça e exemplarismo punitivo. Ao cruzá-la, o Judiciário deixa de ser o guardião da Constituição para se tornar agente político, o que mina a confiança da sociedade nas instituições.
Se a resposta a um suposto ataque à democracia for um julgamento viciado, apressado ou politizado, o próprio Estado Democrático de Direito estará sendo corroído — não pelos acusados, mas por aqueles encarregados de defendê-lo.
Conclusão: Julgar com Constituição, não com convicções
Mais do que julgar os atos de seis indivíduos, o STF está sendo observado quanto à sua fidelidade à Constituição. A imparcialidade do julgador e a estrita observância do devido processo legal não são detalhes técnicos: são a base da legitimidade de qualquer condenação.
A história julgará não apenas os acusados, mas também os que julgaram. E o fará com uma pergunta simples, mas poderosa: foi justo?
Justiça além do tribunal
Em tempos de crise institucional, quando o Judiciário se torna protagonista político e julgamentos ganham contornos simbólicos, é preciso lembrar que o verdadeiro teste das instituições não é punir os que todos já condenaram, mas garantir direitos mesmo aos que todos querem ver atrás das grades.
A Constituição foi escrita não para momentos de calma, mas justamente para conter os excessos em tempos de turbulência. Ela protege o cidadão do abuso do poder — seja ele exercido pelo Executivo, pelo Legislativo ou, como agora, pelo próprio Judiciário.
A legitimidade do Supremo Tribunal Federal, como guardião das leis e árbitro da República, não reside na severidade de suas sentenças, mas na fidelidade aos princípios que jurou defender: imparcialidade, legalidade, devido processo.
Porque se o STF ceder à tentação do justiçamento — ainda que em nome da democracia —, não estará fortalecendo o Estado de Direito, mas sim o substituindo por algo que se parece com justiça, mas não é.
Em nome da democracia, é preciso julgar com Constituição — e não com convicção.