Hollande diz que atentado em Nice tem ‘caráter terrorista’.
Pelo menos 270 pessoas já morreram em mais dez ataques ligados ao Estado Islâmico (EI) na França e na Bélgica. A conta soma as vítimas fatais desde maio de 2014, quando um ataque ao Museu Judaico de Bruxelas deixou quatro mortos e inaugurou a atual onda terrorista. Inclui os atentados em Paris em janeiro e novembro de 2015, as bombas no aeroporto de Bruxelas em março passado e os (até agora) 84 mortos ontem, quando um caminhão avançou contra a multidão que celebrava o 14 de Julho, data nacional francesa, na Promenade des Anglais, em Nice.
França, 14 de julho, caminhão, multidão em festa. Local, data, método e alvo não são coincidência. Nada na estratégia do EI é. O grupo age com base numa visão escatológica própria, uma ideologia apocalíptica por meio da qual escolhe seus alvos e promove o terror. Em 2010, ataques com caminhões já faziam parte dos planos da Al-Qaeda na Península Arábica, um dos grupos que deram origem ao EI, segundo pesquisadores do Memri Project. Todo infiel (ou tafkir) é visto como alvo legítimo pelos jihadistas dos EI. Isso inclui cristãos, judeus e também muçulmanos que praticam outras vertentes da fé.
Mas por que novamente a França? Um estudo da Brookings Institution revela que os países de língua francesa são os maiores focos do terror islâmico na Europa e se tornaram seus maiores alvos. “O fator capaz de prever melhor a radicalização não é a riqueza de um país, a educação de seus cidadãos, saúde, nem mesmo acesso à internet”, escreveram os pesquisadores William McCants e Christopher Messerole. “É se um país é francófono, quer dizer, se conta (ou já contou) o francês como língua nacional.” Vários motivos explicam isso.
Tanto França quanto Bélgica oferecem o caldo de cultura ideal para a fermentação do terror islâmico. Altos índices de desemprego na juventude, periferias pobres com grandes populações muçulmanas, militância da variante salafista que propaga a versão violenta do Islã estão presentes em várias cidades. Sobretudo Paris e Bruxelas, mas também cidades no Sul da França, região de forte comunidade árabe, caso de Marselha (onde praticamente metade da população é muçulmana) ou Nice, alvo do ataque de ontem.
A data escolhida, 14 de Julho, também não é casual. Com a tomada da Bastilha, a Revolução Francesa estabeleceu pela primeira vez na Europa um governo laico, com separação completa entre religião e Estado. Sob o manto dos ideais iluministas de “igualdade, liberdade e fraternidade”, a França implantou desde então, em todos os países sob sua esfera de influência, uma prática que se tornou central na cultura francófona, uma versão do secularismo conhecida em francês como laïcité, ou “laicidade”.
É com base nesse conceito que a Suprema Corte francesa julga inconstitucional que alunos frequentem as escolas públicas trajando símbolos religiosos, como o véu portado pelas muçulmanas. Não há esse tipo de restrição em outros países europeus com expressivas comunidades islâmicas, como o Reino Unido. O tema gera uma reação intensa na população muçulmana francesa, que supera os 5 milhões. A liberdade de expressão é protegida de modo também singular pela Constituição francesa, que garante o direito à blasfêmia e ao ataque a símbolos religiosos, na forma como praticado pelos cartunistas do jornal satíricoCharlie Hébdo, alvo de ataque em janeiro de 2015. Muçulmanos franceses costumam ver essa proteção como inaceitável.
Um embate cultural dessa natureza não torna ninguém necessariamente terrorista. Mas ajuda a explicar por que o jihadismo encontra terreno fértil na população islâmica de fala francesa. O Islã tem uma relação distinta com a política das demais religiões, como argumenta o pesquisador Shadi Hamid, da Brookings Institution, em seu livro Islamic Exceptionalism. Ao contrário de outras fés, não houve até hoje, segundo ele, nenhum caso de sucesso ao conciliar Islã e liberalismo.
Os países islâmicos não passaram pela Contra-Reforma nem pelas revoluções liberais que, no Ocidente, separaram a política da religião – a mais radical, nessa separação, foi a francesa. Na França, a “laicidade” faz parte do caráter nacional, celebrado todo dia 14 de Julho. Tal vertente do secularismo soa contraditória aos ouvidos muçulmanos. “O liberalismo imposto é, na verdade, uma contradição em termos”, escreveu Hamid na The Atlantic depois dos atentados de Paris em 2015. “O liberalismo privilegia a autonomia do indivíduo e a liberdade pessoal; negar tal autonomia porque ela se dirige a fins religiosos é, no mínimo, problemático.”
De todas as respostas possíveis para a tensão entre islã e liberalismo, a do EI é a mais cruel e violenta: exterminar o inimigo liberal e impôr a versão medieval da lei religiosa islâmica, asharia, com suas punições mais cruéis, chamadas huddud, como decepar a mão de ladrões ou lançar homossexuais do alto de edifício. Os próprios países e populações muçulmanas que ensaiam outros tipos de resposta, com diferentes graus de sucesso – como Turquia ou Tunísia –, veem isso com horror.
O EI tem sofrido derrotas expressivas no território que controla na Síria e no Iraque, como revela o New York Times. Promover atentados no Ocidente tornou-se, na estratégia do grupo, uma questão de sobrevivência. Para o EI, é preciso espalhar o terror, para dar uma demonstração de força e atrair mais e mais recrutas. Quanto mais território o EI perder, mais atentados haverá. Os alvos serão os locais onde esse tipo de recrutamento pode ser mais promissor, como Turquia, Bélgica ou França.
É impossível ter 100% de segurança. Mas a tragédia de ontem mostra que o Ocidente, em especial a França, ainda não aprendeu a implantar sistemas de vigilância mais eficazes. Ainda demorará também a aprender algo mais importante: impedir a ideologia mortífera do islamofascismo de seduzir a juventude muçulmana no mundo todo.